“Durante a pandemia ouvíamos dos médicos (com razão) de que a política pública sanitária deveria se pautar com base em evidências e esse deve ser o mote para o Direito também.” A frase, citada por Luciano Timm, professor do Mestrado Profissional da FGV Direito SP, resume categoricamente o desafio enfrentado por empresas e pelo sistema de justiça brasileiro: a tentativa de racionalização, por meio do combate à chamada litigância predatória, incentivada por um conjunto de fatores que permitem o ingresso de ações fraudulentas ou abusivas no Poder Judiciário que sobrecarregam sobremaneira a prestação do serviço público a quem realmente precisa.
Um dos caminhos para lidar com a questão passa tanto pelo desenvolvimento de estratégias que possam tanto sensibilizar o Judiciário e a própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) quanto por medidas preventivas e de monitoramento para inibir que novas demandas sejam apresentadas. O tema foi assunto do encontro “Reflexões sobre Litigância Estratégica”, coordenado por Luciano Timm e Ana Paula Nani, mestre em Direito pela FGV Direito SP, no dia 6 de agosto. O evento reuniu representantes da magistratura, da academia, da advocacia e de empresas para compartilhar experiências e reflexões que contribuam para inibir o uso de práticas predatórias sem prejudicar as demandas com fundamento.
Ana Paula Nani, que também é professora na ESPM, destacou alguns indicativos que caracterizam demandas predatórias, identificados pela Corregedoria Nacional de Justiça: quantidade expressiva e desproporcional aos históricos estatísticos de ações propostas por autores residentes em outras comarcas/subseções judiciárias; petições iniciais acompanhadas de um mesmo comprovante de residência para diferentes ações; petições iniciais sem documentos comprobatórios mínimos das alegações ou documentos não relacionados com a causa de pedir; procurações, contestações e recursos genéricos e distribuição de ações idênticas. “Essa inflação de demandas contribui para o custo do sistema de Justiça brasileiro, considerado um dos mais caros do mundo, e afeta a eficiência na prestação de serviços à população”, avalia Luciano Timm.
Partindo dessas premissas, o evento contou com a participação de Maria Rita Rebello Pinho Dias, juíza da Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Capital do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP); Renato Chagas Machado, gerente executivo jurídico da Diretoria Jurídica do Banco do Brasil; Murilo Meneghetti Nassif, senior legal manager na Sanofi; Humberto Chiesi, Legal Director of Dispute Resolution da Latin America no Mercado Livre; e Thomas Conti, economista e cientista de dados e professor do Insper.
Humberto Chiesi, do Mercado Livre, apresentou os desafios de atender a demandas que são gigantescas: “São 54 compras realizadas por segundo no mundo, mais da metade no Brasil e, por hora, são criados ou alterados mais de 140 mil anúncios, o que gera uma alta litigância”.
O executivo também contextualizou essas informações dentro das atividades do Judiciário, citando dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2023, que informam um número de 118 milhões de processos que tramitaram na Justiça, contabilizando R$ 132 bilhões de custo. “O número de processos é mais que o dobro da Índia, país referência no estudo de litigância predatória e com uma população sete vezes maior que a do Brasil. Um estudo, que reuniu 53 países de diversos continentes e características econômicas distintas, apontou que a média de participação dos custos com Judiciário é de 0,4% do tesouro nacional, enquanto a do Brasil chega a 1,6%”, diz.
Chiesi conta que há um ano e meio o Mercado Livre adotou uma prática de monitoramento para identificar os focos de litigância predatória e, a partir de então, partiu para uma campanha de esclarecimento junto à Justiça, OAB e junto à população que é procurada por advogados para entrar com práticas predatórias.
O resultado foi que, nesse período, houve uma redução de 50% na entrada de ações na Justiça e um total de 573 decisões alegando litigância de má-fé, que rendeu uma economia de R$ 1 milhão de reais às empresas.
O tema é relevante e merece ser mais bem estudado, sobretudo a partir de evidências empíricas, afirmam Timm e Nani. Afinal, há sinais de que essa litigância abusiva acaba favorecendo poucos advogados em detrimento da maioria da classe profissional, em função dos efeitos concentracionistas no mercado que uma industrialização do litígio gera, por vezes até associada a fundos de investimento.